Ressignificar

 

Era para ser uma tênue lembrança? Pois bem, não foi o que veio, não de início.

Asco, raiva, revolta, medo, incompreensão, assédio moral e sexual, memórias congeladas formaram uma vítima. Um perigo isso! E uma pena, um desperdício. Quase meio século de escolhas voltadas com o olhar para essa criança.

A adulta carregava enraizada a criança assustada, não merecedora. E uma crença assim sai fácil não, tem coisa que uma vida só não resolve. Se disfarça, se esconde, se nega, adulto é tinhoso, mas no meio do peito ela está lá, lembrando quem é você, de onde você vem. Um peso vivo e congelado, e adianta ter raiva e negar não, um dia só melhora se fizer as pazes com ela.

E então esse dia chegou, afinal!

Mas nem pense que ele chega assim, de supetão, divino e gratuito, é um aprendizado que dói. E liberta, como liberta!

O acaso:

Começou com uma postagem no Instagram, a mulher postou uma figurinha sobre empoderamento feminino. Que audácia! Havia muitos momentos em que a adulta esquecia completamente a criança no peito. E aqui começa o início do fim? Nada, só do começo.

O primo, o maldito, o culpado, o asqueroso que a assediou durante a infância, o primo que cristalizou em sua certeza que ela não valia a pena, comentou rindo (kkkkkkkk), um riso maldito que ultrapassou o tempo e deu um tapa na cara da mulher sentada na sala de sua casa.

Quarenta anos? O que é o tempo? Indignação explodindo! E ela responde: Primo, ainda bem que o tempo passou, senão eu não sei o que seria capaz de fazer com você. E o primo ainda responde: Saudades, prima. E então a criança ferida acorda com a ira e a força de uma mulher adulta.

Ódio, Ódio, que ódio! E ira! A mulher toma a criança no colo e com toda sua capacidade enfrenta o primo criança. Matar seria pouco, trucidar ele seria mais adequado, e chora com uma ira e uma dor completamente fora do contexto de sua vida atual. E chora até secar o sentimento de tantos anos. E finalmente acha que ali morria a criança vítima, que ali nascia uma nova adulta carregando uma criança saudável. E que gratidão e que alívio imensos! Mas era só o comecinho.

A providência:

Três dias depois a mulher está chegando em casa tarde da noite, precisa abrir o portão. Olha cuidadosa e vem uma moça descendo a rua e um rapaz de bicicleta também. Tudo bem, pela velocidade da bicicleta ele não vem para assaltar. Desce a abre o portão.

Em pouco tempo a moça passa e volta correndo, entra no portão aberto e some pra trás do prédio. O rapaz da bicicleta está vindo e vai assaltar! A mulher está em pé, a porta do carro aberta porque ia colocá-lo para dentro.

E então uma ira vinda sabe-se lá de onde toma conta da mulher inteira! Ela salta pra dentro do carro gritando: vou matar você, filho duma puta! E ia, se tivesse tido chance. Diz o ditado que cachorro sabe quando o outro tá doido. A mulher estava completamente. O rapaz foge na bicicleta e a mulher desce a rua de ré, gritando que ele volte pra morrer.

E então ela volta a si. O que é isso!? O rapaz já estava distante. Meu Deus, o que é isso? E para, respirando. Volta, coloca o carro pra dentro, fecha o portão e vai chamar a moça atrás do prédio.

Só no outro dia consegue entender a sorte que teve. Se o rapaz estivesse armado ela estaria morta. Se ela tivesse matado o rapaz, nunca teria paz. O que houve??? E então veio o clarão! A ira, a ira, a ira!!! A ira contra o primo dias antes, ainda estava lá e foi extravasada contra o ladrão.

A adulta estava curada, a criança ainda esperava uma justificativa.

O Divino:

Meses depois foi confrontada e questionada à exaustão. Teve que esmiuçar dolorosamente todo o ambiente da vítima que ainda carregava. Expôs a criança completamente. Rememorou tudo que foi capaz de lembrar da época. Ambiente, circunstância, idade dos primos, idade do primo em relação a ela, relação com os demais, diferenças de idades. E foi forçada a avaliar o primo, e como foi difícil! E de repente as coisas foram fazendo sentido! Meu Deus! Meu Deus!

A diferença de idades, a relação com os outros primos e primas, o início da puberdade desse primo! A Paixão!

E então viu! De repente viu o primo como um menino perdido e sem entender o que sentia, maltratando em sua fúria a prima, sem sequer ter noção do que estava acontecendo! Sem ser capaz de compreender o mal que estava causando!

E sentiu paz, uma paz imensa de si mesma e da menina que agora descansava em paz em seu peito. Paz!

Agora a mulher começava a se completar. Afinal, a tênue lembrança de uma infância que não incomodava e nem mais ditava escolhas. Bem, talvez não exatamente assim, houve um preço a pagar, o explorador cobrou o seu quinhão, a ajuda teve uma motivação, a mulher pagou o preço e aprendeu, e como aprendeu!

A temperança:

Então descobriu que o tempo cria hábitos, a interpretação dada pela criança cria raízes e um modo de operar que não sai fácil. Não basta satisfazer a criança. A adulta carrega uma vida inteira de escolhas baseadas em premissas, algumas bastante sádicas.

A criança pode até estar em relativa paz agora, a adulta precisará ressignificar toda a sua vida, as escolhas e os caminhos. Separar quais estavam atrelados ao seu modo "torto" de olhar a vida. E aprender a fazer escolhas diferentes.

Culpa, lamento, raiva de si, todo um caminho teve que ser percorrido, as vezes com muita dor, até que após exaurir a dor, a culpa e o lamento, chegou uma aceitação que não esperava.

A maturidade:

Como se após tanta tempestade e luta, de repente as coisas ficassem simples. E então chegou a paz, uma paz tranquila com o passado. Uma paz serena com o futuro.

A mulher e a criança finalmente se abraçavam. A criança completamente satisfeita em sua necessidade de amor, cuidado e proteção.

A mulher pode ainda não saber exatamente o que deseja, mas  capaz de identificar de longe o que não deseja. E a vida ganhou novo sentido, uma perspectiva há muito deixada para trás retornou com força. A mulher olha pro peito e sua criança sorri de volta, livre, feliz, solta correndo nas ruas de São Luis, uma criança que podia o mundo. Uma adulta em paz consigo.

E assim nasceu a gratidão.

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