Sem ideia de suas ideias
A FOTO DE GAUDI : La Pedrera
Vá, minha filha, escreva um texto:
Sentou para escrever.
Ela não tinha ideias. Simplesmente a ideia de não tê-las ocupava qualquer ideia.
E quanto mais se esforçava, mais branca ficava a tela mental.
Nossa, e como aquilo cansava!
Mas venha cá, uma mulher saindo por entre grades tortas, falsas grades?, (a figura) o que poderia significar aquilo?
E ainda mais em conto? E pensava que poderia faltar energia, e clicava em salvar o que tinha escrito, poucas linhas. E toda vez que pensava em faltar energia e salvar, a cabeça branqueava. Né mais fácil crônica? E quem liga se é uma arte menor e mais prática?
Continua, ela pensava. Poderia ser sobre a emancipação feminina? Entendia disso? Sim, na prática, não na teoria. Poderia ainda inventar uma estória mirabolante, uma mulher fugindo das próprias amarras, ou das amarras da sociedade ainda machista? Também, mas corria o risco de descambar para algo comum, batido, mercado de trabalho, responsabilidades com filhos, casa e dividir despesas etc etc etc. E sobre emancipação sexual? Pois é, disso entendia bem na prática, mas era o momento? Talvez não. Mulher adulta, mundo dos solteiros, dos casados disfarçados, da noite fervilhando de “entas”, isso poderia soar esquisito, melhor não arriscar.
Lembra da figura, da figura! Num dia triste e sombrio a mulher cansou de se sentir cansada e oprimida por tantas grades, que agora pareciam tortas, grades de sua própria consciência (ou inconsciência), grades seculares, grades familiares, conhecidas e desconhecidas. Então simplesmente se levantou de onde estava, pesada, sacudiu tudo de lado, exceto a roupa do corpo. Encarou as grades. E não é que no canto esquerdo havia uma porta? Cristo! Estava lá sempre? O que importa? Importa o tempo que resta. Só.
Simples e elegante agora, ela saiu em passos firmes para o mundo lá fora.
Salvou o texto. E nem ao menos se demorou olhando para trás.
(fim)
Ei ei ei!, fuja não! Sua bela, elegante, altiva e livre, mulher “enrolona” indo embora a passos firmes. E alguma coisa a fez parar, a mulher não sabia precisar do que se tratava, alguma coisa estava incomodando. Conto, crônica, conto, crônica, voltou quase perdendo o que tinha conquistado, quase foi embora de vez, de novo.
Mas voltou, pegou um banquinho no canto do vão, bem no cantinho das grades, sentou, encarou as grades tortas e pensou novamente: sobre o que escrevo? Lembrou de Rolando Lero, da escolinha do professor Raimundo, e sorriu, e então gargalhou até quase cair do banquinho minúsculo. E quanto mais olhava mais ria, até perder o fôlego.
Decidiu que precisava de um café, a vida estava leve. Fez uma reverência às grades que ultrapassara, pensou rapidamente em quantas ainda encontraria. E seguiu feliz para um café com pão de queijo.
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