Ponto de ônibus em 2019

 Visão do inferno, mas era engano, pelo menos em parte.

Gente, muita gente, e pobreza, e suor e carência.

Eu estou ali. Não queria estar. Como queria estar de carro! (não posso negar a vontade, estaria mentindo)

As roupas não combinam, os dentes faltam, as vozes são estridentes, o sofrimento é escancarado. Não é gostoso fazer parte deste cenário.

Um adolescente gordinho segura a calça com uma mão para ela não cair e com a outra carrega uma sacola grande, passa rápido e desengonçado por mim, quase sinto o seu esforço e cansaço. 

Consigo um lugar num banco improvisado de madeira que alguma alma caridosa fez, e sinto vergonha de estar ali, de estar pobre, suada, cheia de sacolas. E sinto culpa por desejar estar longe, por desejar passar na pista de carros. Sento e o ambiente me invade.

A estrada lotada de tráfego pesado que passa na frente, o sinal que fecha e os ambulantes passam correndo nas pistas com suas carroças, driblando o tempo e se esforçando para empurrá-las nos desníveis da pista.

Vejo um menino, quase adolescente, negro, sentado na cadeira de rodas, os joelhos com enormes calos, as pernas com reforços dos joelhos pra baixo, o olhar perdido. Imagino ele se arrastando, se esforçando para sair do lugar dentro de casa, e o peito me aperta.

Olho do lado, tem uma morena muito bonita, e do lado dela uma criança com paralisia cerebral, não se mexe, olhar perdido, vejo um homem passar de carro e devorar essa mulher com os olhos, carne e crueza.

Chega uma senhora com um menino magrinho, também negro, ela indica e ele senta do meu lado, ele está fraquinho, tudo nele indica isso, o jeito de sentar, os movimentos cansados, a pulseira de atendimento ainda no pulso. Só o brinquedo na mão lembra que ali tem muita vida esperando pra brincar.

Também do lado tem outra mãe, de mãos dadas com ela tem uma criança de uns seis ou sete anos, só veste uma fralda descartável. A criança não para, faz movimentos repetitivos, rosna, e se movimenta no espaço que o braço da mãe permite, e ela pacientemente não reprime, apenas deixa que ele se expresse assim por muito tempo. Ela está magra e cansada, aqui uma exceção, são brancos.

Tem um vendedor, também negro, carrega duas caixas de isopor, um corpo musculoso moldado pelo esforço, no pescoço uma bolsinha de dinheiro. Suado, se esforçando, gritando, faz tudo rápido, acostumado ao tempo curto entre os ônibus. Me lembro da senzala, por quê?  

Fico cada vez mais agoniada e me prometo não ir mais para aquela parada. É muito sofrimento e muito desamparo!

Essa é a parada de ônibus de um Hospital público.

Sabendo que vou chegar em casa cansada resolvo olhar o outro lado, respiro, me concentro, respiro de novo. Já fiz isso antes. Me volto para dentro de mim e me concentro, tento e tento. Quando sinto que consegui um tiquinho, hora de passear no ambiente e procurar coisas boas, me agarrar ao que possa modificar a crueza dali.

Quando vejo, o rapaz gordinho segurando a calça está conversando com duas moças, observo que ele tem movimentos involuntários na cabeça, elas sorriem enquanto conversam com ele, um sorriso de acolhimento. E era mesmo, não demora muito e vejo uma delas abrir a carteira e dar dez reais a ele, isso mesmo, dez reais. E então acontece dele vir perto de mim, e de dentro da sacola tira uma vasilha de frutas. Enquanto ele come, passa uma moça com a filha comendo batata de saquinho, a moça olha pra mim e diz que queria muito que a filha dela comesse salada porque aquilo (aponta para o rapaz comendo fruta) é uma preciosidade, sorrio. Então o rapaz olha para mim e diz: - ela acha que sou menino por causa do meu tamanho, né? Já tenho 22 anos! A cabeça se movimentando sozinha as vezes, e continua... Deus é grande, né!? Sabe como é vendedor!? Tem dia que não tenho nem dinheiro pra comer e dia que ganho uma benção assim, mas vamos levando, né, já fiz duas cirurgias na cabeça e duas na barriga, tenho válvula na cabeça, mas dou graças a Deus, vamos trabalhando, né! O importante é a honestidade e o trabalho e Deus proverá, né! E vou assentindo. Daí um homem, um dono de uma barraca, pergunta: - Já mostrou as canetas pra moça? E ele me oferece as canetas que vende, e eu compro uma. (aqui começa a nascer algum otimismo).

Procuro com o olhar mais atento, vem uma senhorinha arrastando uma perna, tá arrumadinha e faz um enorme esforço para andar. Outro dono de barraca fala com ela, deve ser conhecida. – Vai pegar pra tal canto? Ela responde que não, que tá com muita dor. Daí num instante ele arruma um banco para ela se sentar e acolhe a mulher com afeto. (as coisas começam a melhorar).

Olho a criança com paralisia cerebral, imóvel e perdida, a morena bonita está de mãos dadas com ela, amorosa. (aqui meu coração começa a ficar menos apertado).

Chega meu ônibus, hora de ir pra casa.

Concluo que ali tem sim, muito suor, muita pobreza e muita carência, em compensação, tem muita humanidade. E começo a pensar na política, no desvio de dinheiro público, na corrupção, no governo que enterrará mais os pobres, e começo a ficar pesada de novo.

Chega, hora aproveitar o mormaço do ônibus para adormecer. Por hoje basta.


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